26 de set. de 2010

Acertando as contas

            Por volta de onze e meia estacionei o carro sob a sombra  de uma árvore, há três quadras de distância da escola Mário Quintana. Trazia comigo três amigos, Nenê, Calucho e o Caveira. Descemos. Nenê e Calucho se sentaram no cordão da calçada, enquanto eu e o Caveira nos escoramos na lateral do carro. O auto era meu, herança do meu pai, um velho Chevette setenta e nove, verde, bem conservado para a idade.
            “Tens um cigarro aí, negão?” me perguntou o Caveira. Retirei do bolso de trás da calça jeans surrada uma carteira de cigarros, um isqueiro e lhe alcancei. O Caveira era um moreno alto, magro, cabelo curto, dentes amarelados, queixo quadrado. Morava na mesma rua que eu. Tinha fundas olheiras escuras, e até um tempo atrás era um cara forte, robusto. O pessoal desconfiava que ele tava na pedra.
            “Puta que pariu, que calorão dos diabos! To pingando suor” exclamou o Calucho.
            “Porra véio, tira essa camisa, como é que não vais sentir calor!?” disse o Nenê.
            “Ele ta dando uma de tímido hoje, não quer mostrar os peitinhos pra nós” falei. “Quando tiver teu filho, os peitinhos pra dar de mamar pra ele tu já tem” todos rimos alto, exceto o Calucho.
            “De mamar eu vou dar é pra tua mãe, isso sim” disse Calucho e todos rimos mais alto ainda.
            Calucho era um negro gordo, barrigudo, baixinho. Vestia um macacão jeans já bem gasto, uma camiseta branca por baixo e um boné dos Lakers virado para o lado. Pelo rosto e pelos braços escorriam grossas gotas de suor. A gente tava sempre debochando um do outro, mas éramos amigões, quase como irmãos. Eu podia chamar ele pra qualquer que fosse o rolo que ele tava pronto pra me ajudar, e vice e versa.
            “Será que vai demorar muito? Tenho que almoçar e pego no trampo à uma e meia.” Perguntou Nenê enquanto limpava os dentes com a unha do dedo mínimo.
            “Fica tranquilo que é jogo rápido” respondi.
            “Vira concreto nesse sol é de matar. Só vou esperar juntar uma grana boa que dê pra comprar uma moto e vou saltar fora”.
            Nenê era um cara mediano, tinha a pele amarelada, a cabeça raspada. Vestia apenas um calção preto e um Quiks laranja. No abdômen se via a grande cicatriz, resultado de uma briga que ocorrera há uns anos na saída de uma festa. Por causa dessa briga Nenê pegou um ano de cana e perdeu o serviço que tinha de empacotador do BIG. Quando saiu veio me pedir auxilio, falei com um amigo e consegui um emprego de servente pra ele numa obra no centro. O sonho dele era comprar uma moto abrir uma tele entrega, mas estava difícil para concretizá-lo, pois no final do mês gastava mais da metade da grana tomando cachaça e fodendo as putas.
            Às onze e quarenta e cinco começaram a passar pela rua os primeiros alunos, uma playboyzada, que vestia moletom vermelho e calça de abrigo azul, o uniforme característico da escola.
            “Vamo fica atento, ta quase na hora” falei. Os dois que estavam sentados se levantaram. Enquanto os estudantes passavam, eu vigiava atento. Somente quando faltavam cinco para o meio dia é que o tal Ricardo foi aparecer. Um garoto magro, de estatura média, loiro, cabelos lisos pelos ombros, vestia o uniforme e carregava uma grande mochila preta. Um merdinha, seria mais fácil do que havia planejado. Vinha de mãos dadas com uma garota ruiva. Entramos no Chevette e fomos seguindo. Os dois andaram por três quadras, dobraram numa esquina e caminharam mais duas, até que pararam em frente a um grande casarão. Ele beijou a guria, se despediu e ela entrou.
            O cara seguiu caminhando, distraído, com os fones no ouvido. A ação foi rápida. Encostei o carro ao lado dele, Calucho e Caveira desceram num pulo. Ricardo não teve sequer tempo de gritar por socorro, pois Calucho, com os braços grossos, lhe aplicou um mata leão ao redor do pescoço enquanto Caveira pegava das pernas. Atiraram-no no banco de trás do carro, onde Nenê esperava. Nenê lhe aplicou dois violentos socos na barriga e disse “Nem pensa em gritar, porque vai ser pior pra ti”. Caveira correu e sentou na frente, ao meu lado. Parti a toda velocidade. A ação não durou mais que trinta segundos.
            Pelo espelho eu via a cara dele, mistura de medo e dor.
            “Por favor, podem levar tudo que eu tenho, meu celular, roupas, tênis, meu iPod, dinheiro, mas por favor não me machuquem” disse ele, mas não respondemos. “Eu não tenho muita grana aqui, mas eu posso ligar pra minha mãe, ela arranja mais, só precisa ir no banco”.
            “Ricardo, é esse o teu nome, não é?” perguntei. Ele permaneceu em silêncio, olhos arregalados. Calucho lhe aplicou um forte soco no rosto, que logo inchou formando um hematoma roxo logo abaixo do olho direito.
            “Ele tá falando contigo, responde”.
            “Si-sim, me chamo Ricardo.”
            “Então, seu Ricardo, só queremos conversar um pouco com o senhor, coisa rápida, enquanto isso lhe aconselho a ficar calado. Mas é só um conselho, pois se o senhor não tem amor pelos seus dentes pode falar a vontade, né Calucho?”. Meus amigos caíram na gargalhada.
            “Olha a cara desse viado, ta todo cagado” disse Nenê.
            Eu dirigia a noventa por hora, em direção a um terreno abandonado que ficava na zona do porto. Em quinze minutos chegamos lá, o local estava deserto. Descemos. Calucho segurava Ricardo por um braço, nós ao redor, caso ele tentasse escapar. No meio do terreno tinha os escombros do que havia sido um grande casarão. Nos dirigimos para a parte de trás, embaixo de uma imensa árvore.
            “Amarrem ele na árvore, como combinamos” falei. Os três fizeram Ricardo abraçar a árvore e amarraram os braços e pernas dele com cordas. Ele não falava, apenas assistia a tudo, com os olhos arregalados, o corpo todo tremendo.
            “Cuidado pra não mijar nas calças, hein” disse Calucho com ar debochado.
            Depois de terem amarrado o cara, eu disse “Bem senhor Ricardo, agora vamos conversar”. Puxei três tijolos improvisei um banco e sentei a uns dois metros da árvore. Meus amigos ficaram em pé, apenas observando a cena.
            “O senhor por acaso conhece a Maria não é?” eu perguntei, mas ele não respondeu.
            “Olha, eu não gosto de ser ignorado... então é melhor você responder as minhas perguntas”.
            “Sim, conheço a Maria”.
            “Pois bem, então quem é a tal Maria?”
            “Era uma guria que eu tava ficando”.
            “Você não deve saber, mas eu sou o irmão da Maria. E pelo que ela e as amigas me contaram, você comeu ela, tirou a honra da minha irmã, e depois meteu um pé na bunda dela, não é isso?”
            “Não! A gente namorava.”
            “Opa! Mas tu não acabou de dizer que ficavam? Agora já diz que namoravam?”
            Nenê, Calucho e Caveira assistiam à cena calados, eles sabiam que apesar do meu tom irônico eu estava puto da cara.
            “É que a gente não ficou muito tempo juntos, só uns dias”.
            “Não me interessa se foram apenas uns dias ou anos, e sim que tu, playboy de merda, comesse a minha irmã”.
            “Ela também tava a fim, eu não forcei nada cara”.
            “Pra que lugar tu levava ela pra foder?” perguntei, e meu tom agora saiu seco, sério. Eu olhava fundo nos olhos daquele desgraçado. Ele não respondeu, abaixou a cabeça e começou a chorar. Me levantei e repeti a pergunta.
            “Pra que lugar tu levava ela pra foder?”
            “Lá pra casa”.
            “Pra que lugar da tua casa? Anda, responde filho da puta!” gritei.
            “No quarto da empregada” disse ele baixinho, de cabeça baixa.
            Passei a mão pelo rosto tentando me controlar, eu sentia o ódio percorrer todo o meu corpo.
            “Vocês ouviram, esse mauricinho de bosta comia a minha irmã no quarto da empregada” disse olhando para os meus amigos.
            “Vamo quebra esse cuzão” falou Calucho entre dentes, ele também tinha raiva no olhar.
            “Calma, eu já sei o que vou fazer”. Voltei a encarar o Ricardo. “Quantos anos tu tens, cara?”
            “Tenho dezessete”.
            O pau no cu tinha a mesma idade que eu.
            “E tu sabe quantos anos tem a minha irmã?”
            “Tem catorze”.
            “Não, ela tem doze”.
            “Mas ela me disse que tinha catorze, eu juro”.
            “Ela ficou grávida” cerrei meus punhos ao pronunciar essa frase. Ricardo ficou estupefato.
            “Eu não sabia, cara, te juro que não sabia, ela não tinha me contado. Mas eu te prometo que eu assumo a criança, pago uma pensão e tudo”.
            “Eu já fiz ela abortar. Não ia deixar uma irmã minha ter filho teu. Antes ficasse prenha de um mendigo qualquer. Mas não me importa a gravidez. Não me importa a idade dela, a tua idade, se tu forçou ela ou se foi ela quem quis te dar. Nada disso me interessa”. Me aproximei mais dele. Me abaixei e com um graveto fiz uma linha no chão, de um lado ele, do outro eu..
            “Ta vendo essa linha aqui? Isso é o que me importa. Se eu atravessar ela, vou ter que sofrer as conseqüências, e se tu atravessar, também vai ter que sofrer. E tu atravessou e veio muito para o lado de cá, entende”
            Ele me olhava espantando, com o rosto molhado pelas lágrimas, não entendia nada que eu falava.
            “Agora eu vou ter que te punir cara, e tem que ser algo forte, pra servir de exemplo pros outros também. Abaixem as calças e cueca dele”.
            “Pô cara, pra que isso, eu peço desculpas, se tu quiser consigo uma boa grana pra tua família, mas não faz isso, eu sou homem” disse ele chorando feito um bêbe.
            “To vendo o quanto tu é homem” falei egargalhando, enquanto Caveira abaixava as calças dele. “Mas ninguém aqui vai comer teu cu rapaz, não te preocupa quanto a isso, temos nojo de ti.”
            Me afastei e olhei no terreno em volta. Atirada a um canto estava uma velha garrafa plástica de refrigerante. Peguei a garrafa e gritei pro Nenê “me atira o isqueiro”. Ele me atiro, ele e os outros não sabiam o que eu tinha em mente. Puxei do bolso da frente das calças um pequeno rojão.
            “Seu Ricardo, o senhor ta vendo isso aqui” falei segurando o rojão entre dois dedos “isso aqui é o famoso b12, praticamente uma bomba. Que tal ver o poder destrutivo dessa belezinha?”.
            Destampei a garrafa, acendi o b12, joguei pra dentro e tampei novamente, o mais rápido que consegui. Joguei a garrafa ao lado de Ricardo. Dentro de uns segundos veio a grande explosão. Uma nuvem de fumaça se levantou, deixando um forte cheiro de pólvora no ar. Ricardo entrou em choque, não piscava, a boca aberta.
            “Cara, tu não vai fazer isso que eu to pensando, né?” perguntou o Caveira rindo.
            “Abre o cu desse filho da puta.” Mal terminei de falar e Ricardo começou a berrar desesperadamente e a implorar que não fizesse aquilo. Quanto mais ele chorava e gritava, mais eu me sentia excitado. Tirei outro rojão do bolso e me aproximei.
            “Meu, tu só pode ser louco!” disse Calucho.
            Caveira afastou as duas nádegas do filho da puta. Enfiei metade do rojão pra dentro do cu dele e acendi. Nos afastamos rápido. Eu estava calmo. Tentava imaginar o que se passava na cabeça daquele cara, enquanto ele gritava, nos segundos que antecederam a explosão.

20 de set. de 2010

Mãe e filha

Serena acordou com o choro do bebê. Tinha a cara amassada de mais uma noite mal dormida. Olhou no despertador, oito horas de trinta e três minutos. Fazia pouco mais de meia hora que o marido havia saído para o trabalho. Serena se levantou, foi até o berço da criança que ficava no mesmo quarto, cerca de uns três metros de distância a frente da cama do casal. Pegou a criança no colo e começou a embalá-la.
            “Não chora Aninha, mamãe ta aqui contigo, não chora.”
            Aninha era a filha do casal, uma garotinha rechonchuda, de um ano e três meses de idade. Enquanto embalava a criança, Serena lembrava de como sua vida se transformara nos dois últimos anos. Relembrar esses acontecimentos era uma atividade que fazia várias vezes durante o dia.
            Serena conheceu Roberto em uma aula de Introdução aos Estudos Literários durante o primeiro semestre do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas. Ela tinha dezenove e ele vinte e um. Ficaram durante um tempo e passaram a namorar. Um relacionamento conturbado, cheio de brigas. Um ano depois ela engravidou, um momento difícil para os dois. Roberto se sentiu na obrigação de agir como um homem honrado e casar com Serena. Ela, a contra gosto, cedendo a pressão da família, acabou aceitando o casamento. Com a ajuda dos pais alugaram um pequeno apartamento de um quarto na Zona Norte e compraram alguns móveis e eletrodomésticos, coisa mínima. Quando Aninha nasceu, Serena trancou a faculdade para poder cuidá-la. Roberto estudou dois meses feito louco, prestou concurso para a prefeitura e foi aprovado em primeiro lugar para o cargo de auxiliar administrativo. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. O salário não era muito alto, e no final do mês sempre se viam obrigados a pedir dinheiro aos pais para poder pagar algumas contas. Até que um amigo de Roberto lhe arranjou um emprego à noite em um trailer de lanches, e ele também trancou a faculdade. Roberto passava o dia fora, saia de casa às oito da manhã e retornava somente de madrugada, lá pelas duas, caindo de cansaço. Serena passava o dia com a filha no apartamento. Vez que outra visitava os pais ou alguma amiga da faculdade. Mas ultimamente nem ânimo pra isso tinha, o máximo que fazia era dar uma breve caminhada com Aninha em volta da quadra ou então ir até o centro pagar contas.
            Após vários minutos de embalo, Aninha se acalmou, mas não voltou a dormir. Pela janela Serena viu que o tempo estava meio estranho. Aproximou-se, abriu o vidro e olhou para o céu. Dali a algumas horas quando muito, provavelmente estaria chovendo. Dirigiu-se à sala e se sentou no sofá. Ajeitou com carinho a menina em seu colo, abaixou uma alça da camisola, deixando amostra um pequeno seio e deu de mamar à criança. As nuvens bloqueando grande parte dos raios de sol, e as lâmpadas apagadas deixavam o local um tanto escuro. Serena pegou o controle remoto e ligou a TV. Uma mulher de avental branco, rodeada por panelas, potes, tigelas e recipientes ensinava a preparar um “escondidinho”. Trocou de canal. Tom armava uma de suas várias engenhocas para tentar capturar o Jarry. Trocou de canal. Um rapaz de voz fina apresentava as tendências em calçados para o próximo inverno. Trocou de canal. Embaixo da tela, num retângulo laranja, em letras brancas havia a mensagem Espiritismo: especialista afirma que os espíritos estão entre nós. E com uma típica melodia de mistério ao fundo, um homem gordo, calvo, de um largo bigode, trajando paletó preto e gravata listrada em azul e branco, falava as seguintes palavras:
            “Sim, os mortos estão entre a gente. Eles estão em todos os lugares. Aqui mesmo no estúdio agora vários deles nos fazem companhia. É verdade que não os vemos, mas isso não quer dizer que não estão aqui. Você aí que nos acompanha nesse momento, tente senti-los, se concentre. Sabe aquelas sensações que sentimos de estarmos sendo vigiados algumas vezes, pois são justamente os espíritos ao nosso redor. E os mortos nos passam tanto energias positivas quanto negativas. Se a pessoa era boa enquanto viva, ao morrer vai virar um espírito bom. Mas se ela era um indivíduo ruim, vai virar um espírito mau, o vulgo encosto, que fica passando energias negativas.”
            Enquanto o homem falava, algumas imagens com aparições de supostos espíritos passavam na tela. Um esboço do que parecia ser um garotinho em uma foto preta e branca muito antiga, tirada numa igreja. Um senhor alto, barbudo, calvo, trajando um terno, ao lado dos noivos numa festa de casamento. Uma menina de vestido branco em pé, ao fundo de uma sala de aula lotada. Serena desligou a TV, sentiu um arrepio de medo e olhou ao redor, imaginando quantos espíritos estariam com ela naquele momento, quem sabe até mesmo sentada ao seu lado. Notou que Aninha já terminara de mamar e havia pegado no sono. Com todo cuidado para não acordá-la deitou-a no carrinho.
            Foi até a cozinha e se desanimou ainda mais ao ver a pilha de louça na pia que lhe aguardava. Panelas, pratos, copos, garfos, facas, concha, fogão respingado de oléo. Foi até área, ali a pilha era formada por roupas. Calças, camisetas, camisas, cuecas, calcinhas, roupinhas da Ana, enfim, entretenimento para todo o dia. Mas Serena tinha vontade para nada. Voltou para o quarto, fechou as cortinas da janela e se deitou novamente deixando o carrinho ao seu lado. A pouca luz que entrava no local era a que vinha do corredor. Ficou a pensar. E se tivesse cometido o aborto, como uma amiga lhe aconselhara? Não conseguia evitar que tais pensamentos lhe invadissem a mente todos os dias. No começo até relutava, mas agora se deixava levar e refletia profundamente. Se tivesse abortado não estaria casada, ainda moraria com os pais e frenquentaria a faculdade. Roberto não precisaria se matar trabalhando o dia inteiro e também não precisaria lhe lançar indiretas durante as brigas, insinuando que ela não fazia nada além de dormir. Se tivesse abortado tudo seria diferente. Mas não se arrependia de ter tido a filho, pelo contrário, amava-a mais do que a si própria, a via como um pedaço do seu corpo, sem o qual seria impossível viver. Apenas não estava acostumada com aquela casa, com aquele estilo de vida, era o que pensava. Sentia-se uma estranha ali, tendo de ser mãe, esposa, dona de casa. Sentia-se uma intrusa, como se tal vida não fosse sua. Não era raro ela ficar no meio da sala olhando para os móveis, para o carrinho de Aninha, acariciando as paredes, e sentindo uma sensação esquisita, uma vontade de sair correndo a todo custo. Acordara várias vezes sobressaltada pelo mesmo pesadelo. Via-se sozinha no apartamento, portas e janelas fechadas, consumida pelo medo. Gritava por Roberto e Aninha, e sem obter retorno, começava a chorar. Corria por todos os cômodos e não encontrava ninguém. Pensava então em fugir para a rua, mas ao abrir a porta se deparava com um longo, estreito e escuro corredor. Percorria passo a passo, com a mão apoiada na parede devido a escuridão. Ao final do caminho outra porta. Serena tentava abri-la, mas estava trancada, voltava então e para seu terror a outra porta tbm se encontrava trancada. Encontrava-se presa, em completo desespero. Tentava gritar, mas tinha ficado sem voz. Aos poucos seu corpo caia, até que não conseguia mais se mover. As lágrimas escorriam aquela era a pior sensação do mundo.
            O choro de Aninha fez com Serena acordasse e se sentasse na cama de um salto. Ficou assim parada, olhando para o nada, olhos arregalados, pupilas dilatadas, na boca um gosto amargo. Apertava o lençol com força. As costas estavam encharcadas em suor. Serena se virou para o carrinho, e assim ficou algum tempo. O relógio despertador indicava ser meio dia.
            As duas horas Serena já havia lavado toda a louça e limpado a cozinha. Sentia-se estranha, as mãos suavam, achava que estava com febre. Inquieta, Aninha brincava no carrinho com algumas bonecas. O vento balançava as vidraças das janelas do apartamento e já começavam a cair os primeiros pingos, era o temporal chegando.
            Já eram quatro horas quatro horas da tarde quando Serena lavou a última peça de roupa que faltava, uma calça jeans de Roberto, manchada de óleo. Aninha começou a chorar. Serena pegou a menina no colo, abaixou a calça e pelo mau cheiro percebeu que a criança precisava ser trocada.
            “Aninha, meu amor, não tens mesmo pena da tua mamãe, hein! Precisava cagar feio desse jeito”. Disse a mãe, e Aninha respondeu com um largo sorriso deixando amostra seus dois dentinhos. Serena foi até o quarto, pegou uma toalha, o pacote com fraldas descartáveis e o pote com lenços umedecidos. Armou a toalha sobre a cama, deitou Aninha sobre ela. Tirou a roupa da criança, embrulhou a fralda suja e limpou a bunda da garota com os lenços. Suas mãos tremiam enquanto fazia isso. Teria de dar banho em Aninha. Pegou-a no colo e foi até o banheiro, onde encheu a banheira com água morna do chuveiro. Quando voltava para o quarto para pegar roupas limpas um trovão ensurdecedor a fez estacar, gelada. Um vento forte trazia nuvens carregadas, negras e de repente parecia que a tarde havia se transformado em noite e o apartamento mergulhou em uma escuridão cinzenta. Chuva, vento e raios. Serena se aproximou da janela, um relâmpago iluminou seu rosto e o de Aninha. Lá embaixo a rua estava deserta, e o vento arrastava todo o tipo de lixo. Serena voltou ao banheiro, colocou Aninha na banheira e começou a lavá-la com o sabonete. A garota gostava de banho, ria, balançava os bracinhos e pernas e emitia ruídos de felicidade.
            Serena então parou e olhou para a filha. O rosto alegre da menina contrastava com expressão séria e pálida da mãe. A mulher sentiu sua mente esvaziar, como se tivesse apagado todas as informações de seu cérebro, deixando um único desejo incontrolável, que se repetia numa velocidade constante: matar a menina. Sequer piscava, os lábios secaram e tremiam. Após relutar três vezes, ela mergulhou a menina na água. Em vão a criança começou a espernear. Serena mantinha os olhos fixos na filha, que aos poucos ia se afogando e morrendo. Aninha por fim parou de se mexer, e ficou boiando na água. Serena se levantou e com os olhos muito arregalados, a cabeça baixa, olhando para a banheira, começou a rir, primeiro um riso baixo, contido, mas que por fim se transformou numa gargalhada histérica, sombria, que se espalhou por todo o apartamento. Não era possível dizer se ela ainda mantinha seus sentidos. Então parou de rir, passou a mão pelos cabelos e se atirou sentada ao chão. O corpo inteiro tremia. Começou a arranhar o rosto, braços e peito deixando neles grandes vergões de sangue. Serena virava os olhos, movia a cabeça de um lado para outro, torcia e apertava os dedos das mãos e pés. Tentou se levantar, apoiando-se na pia, não tinha forças e acabou caindo de joelhos, os braços no chão, apoiando o corpo. Vomitou. Um vômito amarelo, mistura heterogênea, uma grande mancha nas lajotas brancas do piso do banheiro. Deitou-se ao lado da banheira em posição fetal, os braços junto ao peito, os olhos secos, sem nenhum lágrima.

13 de set. de 2010

O ALUNO


Corredores vazios
salas de aulas cheias
o professor falando
palavras
que sequer estou escutando
um beijo molhado
um sol quadrado
meu caderno em branco

EU


Pessoas estranhas
Vento estranho
Poesias estranhas...
Minha fala se confunde
Entre a imensidão de vozes
Já nem sei mais o que sou
Já nem sei mais

NA PRAIA

De baixo de
um céu nublado
da cor cinza solidão
mar escuro, denso
salgado
dilacerante vento
gelados
pingos que se soltam
das nuvens carregadas
a chuva lava
o vento seca
a sujeira continua
branca só a espuma
entre o mar e areia
dividindo dois mundos
o terceiro está além
além da água, da areia
das folhas
transfigurado em pensamentos
que se vão e se vêm
Ela se aproxima devagar
a saia balançando
os pés descalços
deixam na areia
mais do que pegadas

marcas

senta-se e diz oi
ele se vira e a encara
ela tem um rosto
lindo e triste
sentados lado a lado
cúmplices do mesmo sentimento
poderia ser, não?
não, melhor não
ele se levanta
sacode a areia
e vai embora

O DIA EM QUE ZÉ SE INDIGNOU COM SEU PAÍS

cuidando
roubando
correndo
correndo
correndo
pulando
batendo
subindo
pedalando
pedalando
pedalando
desviando
dobrando
caindo
levantando
correndo
correndo
escondendo
correndo
pulando
entrando
saindo
pulando
caindo
brigando
apanhando
viajando
mentindo
apanhando
mentindo
apanhando
confessando
chorando

ARTIGO INDEFINIDO


ARTIGO INDEFINIDO

Uma noite escura
Uma dor sem cura
Uma garrafa vazia
Uma garota nua
dorme
Uma dor na cabeça
Umas roupas jogadas
Um olhar pro lado
Uma pele macia
Uns poucos quinze anos
violados
Um desespero
Um arrependimento
Um arrependimento

CAMINHO

Por entre carros, motos e
pessoas estressadas
respirando
fumaça tóxica
banhada por chuva ácida
uma pomba pousa
repousa
come farelos
indiferente a tudo
a criança que corre
o mendigo que dorme
enrolado em jornais
um homem que fuma
enquanto tosse
motores, buzinas e o
tac tac
dos sapatos das madames
uma melodia que entontece
uma velha de touca
se arrasta
pra atravessar a rua
enquanto um rapaz a acompanha
e oferece um empréstimo
vem até mim e pergunta
tem um cigarro?
não, não fumo
e ele segue rua a fora
completando um quadro
de cores, personagens e ruídos
E a pomba satisfeita
levanta vôo
se afasta, some na
imensidão azul
eu não posso
estou preso a esse mundo
tão decadente

ROTINA

Dona Alzira, como de costume todas as manhãs, levantou bem cedo, às seis e meia. Vestiu seu velho casaco cinza e calçou as gastas chinelas. Depois, lentamente, com suas costas um pouco curvadas devido a idade, arrastando os pés, dirigiu-se ao banheiro. Abriu a torneira da pia, sem pressa alguma ensaboou as mãos, com elas fez uma concha, aparou a água e a levou até o rosto, repetindo esse movimento outras duas vezes. Esticou o braço, pegou a toalha e secou-se. A sua frente, o espelho refletia a imagem de um rosto cansado, marcado pelo tempo, pelas rugas. Na cabeça ainda lhe restavam ralos cabelos embranquecidos pelo suceder dos anos. Não havia como negar estava bem velha. Os oitenta e quatro anos lhe pesavam sobre as costas. Eram oitenta e quatro ou oitenta e cinco? Nem isso se lembrava mais, chegava a ser engraçado. Os olhos enxergavam pouco devido à catarata, mas nem isso impedia a velha de continuar com sua rotina diária.
            Após lavar-se, dona Alzira foi para a cozinha, abriu a velha e enferrujada geladeira vermelha, e d ela retirou uma caneca com leite. Após muita luta com o isqueiro, conseguiu acender o fogão. Ficou ali todo o tempo, dessa vez não queria que o leite derramasse, isso acontecia todos os dias, mas dessa vez ela não iría permitir, era questão de honra. Mas a velha deixou o isqueiro cair das mãos, no tempo em que demorou para se abaixar e levantar com ele em mãos, o leite derramou. Dna Alzira, como sempre fazia naquela situação, balançou a cabeça em sinal de negativo e murmurou baixinho um “de novo, de novo”. Foi até o armário e pegou um pacote de bolachas.
            Tudo isso fazia parte do ritual diário da velha. Acordar, levantar, lavar o rosto, tomar café e levar café para o marido. Esse era próximo passo, e foi o que fez. Sobre uma bandeja colocou a xícara com o leite e um pires contendo cinco ou seis bolachas. Oi meu velho, tá na hora de acordar, te trouxe um leitinho bem quente ia dizendo a velha enquanto sentava-se na beira da cama e soltava a bandeja sobre a cômoda. Vai comer as bolachas inteiras ou quer que eu desmanche elas no leite? Ai, ai, tu sempre responde a mesma coisa e eu sempre faço a mesma pergunta, falou a velha sorrindo enquanto picava as bolachas e as soltava dentro da xícara. Após apanhou a colher, encheu-a com o mingau formado pelo leite e pela bolacha picada e levou até a boca do marido, repetindo esse gesto algumas outras vezes. Vamo querido, só mais um pouquinho. Tá bom, tá bom, mas no almoço tu vai comer tudinho que eu trouxer hein. Ligar a TV? Tá bom, queres ver qual canal? Desenho? A gargalhada da velha ecoou pelo quarto. Nessa idade e ainda gosta de desenho. Dona Alzira dirigiu-se até a antiga televisão e ligou-a num canal. Na tela via-se Tom correndo atrás de Jerry.
            E a rotina seguia, as horas arrastavam-se como os pés de dona Alzira sobre o parquet ensebado do piso. A velha, com toda sua pachorra, lavou a louça, o fogão, e de tempos em tempos resmungava mas que fedor, deve ter algum esgoto entupido aqui perto. Varreu todos os cômodos e tirou o pó dos móveis. A casa não era muito grande, uma sala pequena onde havia dois envelhecidos e rasgados sofás e uma estante de madeira. Havia também dois quartos, o do casal e o outro um pouco maior, onde nele criaram os três filhos. Na parede havia locais onde a pintura descascava, outros onde faltavam pedaços de reboco. A casa tinha poucas janelas, além disso, estavam sempre fechadas, o que dava ao ambiente uma escuridão que chegava a ser sombria e um desagradável cheiro a mofo.
            Apesar da elevada idade, dona Alzira fazia todas suas tarefas com gosto. Na verdade se não as tivesse para fazer, não saberia viver. Tudo aquilo lhe entretinha. Após limpar a casa, preparou o almoço, uma canja de galinha. Encheu o prato, colocou-o sobre a bandeja junto de uma colher e se dirigiu para o quarto. Oi meu velho, tá na hora do almoço, fiz uma canja bem gostosinha pra ti. A velha soltou a bandeja sobre a cômoda, sentou-se na beira da cama e colocou um velho guardanapo encardido ao redor do pescoço do marido. Coisa de criança nada, isso aqui é pro senhor não se sujar como sempre faz. Dona Alzira encheu a colher com a sopa e levou até a boca do marido, repetindo esse movimento por várias vezes. Como não quer mais? Tu não comeu nem metade ainda querido. Cheio nada! Mal tomasse café hoje! Tá bem, tá bem, não vamo brigar, mas tu sabe que tem que se alimentar, pra poder levantar dessa cama e passear comigo no sol. Não pode ficar aí só deitado, não pode deixar a velhice te vencer. A velha recolheu o guardanapo, o qual estava empapado de canja de galinha, limpou o rosto do marido e comeu o restante da sopa que ainda estava no prato.
            Levantou-se, lentamente levou a bandeja para a pia e lavou a louça do almoço. Começava então o ritual da tarde, pelo cochilo de mais ou menos hora e meia. A velha voltou ao quarto, desligou a TV, sentou-se na cama, tirou o casaco e as chinelas e deitou-se ao lado do marido. E ficou parada, em silêncio, olhando fixamente para o teto, como se lá estive alguma coisa muito interessante. É triste meu velho, botamo três filhos no mundo e nenhum deles vem nos ver faz mais de mês. Não, o Pedro se mudou pra São Paulo, te esqueceu? O Roberto nunca foi muito apegado a gente. Mas a Julia é que me deixa triste, depois que casou parece que esqueceu que tem pais. É verdade, nem os netos vem nos ver. Mas não chora meu velho, não chora, temos um ao outro ia dizendo a velha com os olhos lacrimejados. Só nos resta é dormir que ganhamos mais. A velha aproximou-se do marido, beijou-lhe a face, virou-se para o lado, encolhida e adormeceu logo em seguida. Acordou alguns minutos depois com as batidas na porta. Já vai, já vai! Não deixam nem a gente dormir em paz!
            Dona Alzira levantou-se e dirigiu-se a porta o mais rapidamente que seu velho corpo permitira.
            – Julia querida, é você! Entra minha filha, a gente tava falando de você ainda pouco, que você tinha esquecido que tinha pais!
            – Oi mamãe, desculpa não ter vindo antes, mas agora que casei tenho andado sem tempo. Cuidar da casa, do trabalho e das crianças não é fácil – disse a mulher após beijar rapidamente o rosto da velha.
            Julia entrou e sentou-se numa cadeira na cozinha.
            – Mas que fedor é esse?
            – Ah, minha filha, é algum esgoto entupido. Vou ligar para eles virem consertar depois.
            – E a senhora, como está?
            – Estou bem, enxergando pouco, com algumas dores, mas bem. E você, por que não trouxe as crianças, eu quero tanto ver elas.
            – Elas estão na escola nesse horário. Eu só vim por que recebi folga no trabalho.
            – E seu marido, está te tratando bem?
            – Sim, ele é um anjo, mal para em casa, agora que abrimos a segunda loja. E papai como está?
            – Está bem, minha filha, louco pra te ver.
            – Posso ir lá vê-lo?
            – Claro, passe ali no quarto.
            No que entrou no quarto e viu o pai deitado, Julia colocou as mãos sobre a boca para abafar o grito.
            – Que foi minha filha, tá sentindo alguma coisa?
            Julia olhava para a mãe com cara de desespero, de quem não acreditava no que estava vendo e ouvindo.
            – Mamãe – falou ela com o rosto coberto por lágrimas – o papai morreu.
            – Que é isso guria! Não diz uma coisa dessas nem de brincadeira! Seu pai está dormindo.
            – Não mamãe, ele morreu. Como a senhora não percebeu até agora?
            – Ele só está dormindo, pára de dizer essa bobagem!
            – Ele morreu, mamãe.
            A velha então começou a gritar.
            – Não! Ele só tá dormindo! Vai embora, vai embora, me deixa em paz! Você nunca vem aqui, e quando vem é pra me fazer isso! Ele não morreu, não morreu.
            Aos poucos, a velha foi baixando a voz, dando lugar para um choro incontrolável. Julia abraçou a mãe, ali ficaram as duas, chorando, abraçadas. Na cama, o corpo do velho, morto fazia alguns dias, já entrando em estado de decomposição.

As latas

Acordei esbravejando. O relógio em cima da cabeceira indicava ser vinte três e horas e cinco minutos, não fazia nem meia hora que eu havia dormido. Malditos gritos, alguém brigava na rua. Vesti o roupão e fui até a sacada ver o que acontecia. Mendigos desgraçados! Resolveram brigar bem em baixo do meu apartamento. Havia três deles, dois homens e uma mulher. Eram negros, vestiam nada mais do que trapos sujos. Apesar do sono, tentei organizar os pensamentos e entender a cena.
            Os três estavam em volta da lixeira do meu prédio. De um lado um dos homens e a mulher, davam a impressão de ser um casal. Do lado oposto estava o outro mendigo, segurando um grande saco asqueroso. Comecei a entender a cena, eram catadores de lixo, e brigavam por um saco cheio de latinhas de cerveja. Não pude conter o riso, mas me controlei para que não me vissem. O saco era meu, nele havia as latinhas das cervejas que meus amigos e eu tomamos no fim de semana. Tentei ouvir o que discutiam.
             – Vaza daqui Pedro, já te falei que essa zona é minha, pula fora!
– Não fala merda homem, desde quando catador tem zona?
– Tu sabe que o lixo aqui na volta sô eu que junta. Deixa esse saco aí ou vamo acaba brigando.
– Não arruma briga Zé é só meia dúzia de latinhas, vamo embora, deixa ele leva, já tá tarde, ele é maior que tu – realmente o que a Mulher dizia era verdade, enquanto o tal Zé era extremamente magro, o outro possuía um considerável porte físico.
– Não vai levar nada! Essa quadra aqui é nossa, porra, ele sabe disso, tá fazendo sem-vergonhice, o saco é nosso e não vou embora sem ele.
– Ouve a tua mulher rapaz, eu cheguei primeiro que vocês, o saco é meu.
Eu estava me divertindo com tudo aquilo, o sono já havia passado completamente.
– Tu chegou primeiro porque veio de bicicleta desgraçado!
– Olha lá como tu fala comigo, não quero briga nem papo com vocês, as latas são minhas e ponto – nisso Pedro levou a mão em direção ao saco.
– Tira a mão daí ou te quebro todo! – gritou Zé.
– Me solta rapá, tu não sabe com quem tá mexendo.
– Zé, pára Zé, vamo embora, não briga, vamo embora por favor! – a mulher gritou desesperada, mas o marido não lhe deu ouvidos.
Nisso um dos catadores se desvencilhou do outro, foi pro meio da rua andando de ré e chamou o outro fazendo um gesto coma mão.
– Tu quer briga filho da puta, então vem, agora me irritei mesmo, vem se tu é macho.
– Não briga Zé, vamo embora, não briga pelo amor de Deus! – gritava a mulher desesperada, mas já era tarde. Zé atirou o boné longe e foi para o meio da rua, punhos cerrados. Era uma luta desigual, ou outro se ria como se já tivesse a vitória em mãos. Mas Zé apesar de ser magro e pequeno foi quem tomou a iniciativa, partiu pra cima e deu logo um soco, o outro balançou, levou a mão até os lábios, caminhou para trás e levou mais dois socos. Amanhã o pessoal do escritório não vai acreditar nessa história, pensava comigo mesmo.
Apesar de ser noite, era claramente visível o sangue escorrendo no rosto do catador. Zé parou por um instante, e foi aí que cometeu o erro. O outro puxou da cintura algo que me parecia ser uma barra de ferro, e golpeou-lhe fortemente a cabeça. Zé recuou levando as mãos ao rosto, mas logo em seguida vieram mais dois golpes na face, até que caiu. A mulher corria em círculos e gritava por socorro. O outro caiu por cima de Zé e desferiu um, dois, três, quatro, tantos foram os golpes na cabeça de Zé que até perdi as contas. A mulher correu em defesa do marido, mas o outro simplesmente lhe deu um soco, atirando-a longe. Zé estava morto, ninguém poderia sobreviver aquilo.
O outro se levantou, cuspiu em Zé, foi até a lixeira, pegou o saco, subiu na bicicleta e foi embora. A mulher ali ficou, ajoelhada em cima do corpo do marido, gritando por socorro, que salvassem Zé. A luz vinda da lâmpada de um poste próximo reluzia na imensa poça de sangue. Ao longe escutei sirenes, me irritei. Já não bastava aquela mulher aos berros, agora ainda viria a polícia, IML enfim, seria uma confusão ainda maior, e eu tinha de levantar cedo pela manhã.
Na verdade eu tinha perdido sono, fui até a sala e liguei a TV, com o controle remoto corri pelos canais. Que merda, mais de setenta canais e não havia nada que prestasse. Voltei pra cama, minha esposa continuava dormindo, não sei como não acordara com toda aquela confusão. Me virei pro lado e tentei dormir, a mulher continuava gritando.

ROLETA RUSSA



            Mary andava de um lado para o outro da sala, era aquela maldita sensação de novo, aquele medo, frio intenso, vontade de sumir, era o desespero.
            Isso acontecia constantemente, mas hoje era diferente, estava realmente difícil de suportar. Sentou-se no sofá e tentou respirar fundo, mas de nada adiantou. Suava frio, as mãos tremiam e não paravam quietas, a cabeça latejava. Daria qualquer coisa para ter alguém com quem conversar nesse momento, mas não tinha, mais uma vez estava sozinha, não havia ninguém mais além dela em casa, na cidade, no mundo, ninguém que lhe ajudasse a fazer essa dor toda terminar.
            Tinha de acalmar-se o mais rápido possível, calma Mary, você já sentiu isso antes, não é a primeira vez, vai passar, sempre passa, dizia a si mesma. Mas a sensação era horrível, será que mais alguém já sentira aquilo? Será que tinha morrido e estava no inferno? Mas o inferno não é o lugar para onde irão todas as pessoas ruins? De repente o inferno de cada um é ficar aprisionado dentro da própria mente, é essa era uma hipótese. Sentia-se pior ainda ao pensar nessas coisas,  faltava-lhe ar nos pulmões. Tirou a roupa, precisava de um banho. Fechou os olhos, ajoelhou-se e ali ficou, durante longos minutos embaixo d’água morna. Secou-se sem pressa, o banho deixara-a menos agitada, mas a sensação ruim ainda continuara.
            Vestiu-se lentamente e foi até a janela. O vento frio esvoaçava os longos cabelos, tão negros quanto a noite lá fora, onde as pessoas seguiam normalmente com suas vidas mesquinhas, sem sequer saber que ali encontrava-se ela, Mary, em completo desespero. Riu baixinho. Na verdade nem se chamava Mary, e sim Maria. Quem lhe chamava assim era um ex-namorado, acabou gostando e o apelido foi ficando. Se lhe perguntavam qual seu nome, é Mary ela respondia. Mas hoje o tal namorado não estava mais com ela, abandonara-a, nunca mais voltaria.
            Mary lembrava-se de como tudo era bom antes. Era uma pessoa normal, feliz, sorridente como todas as outras pessoas. Mas tudo isso mudara com o tempo, havia metamorfoseado em uma mulher triste, amarga, infeliz, alguém sem vida, que sobrevive em meio à solidão. Sentia pena de si mesma, tudo poderia ter sido tão diferente.
            Atirou-se no sofá e olhou ao redor. As paredes amarelas, o tapete bege, a velha televisão que lhe fora companheira de tantas noites de insônia, as roupas e papéis atirados pelo chão, o aparelho de som que ganhara dos pais no último aniversário, a grande mesa de mogno acompanhada das seis cadeiras, enfim, tudo aquilo lhe era tão estranho agora. As pessoas lhe eram estranhas, o mundo lhe era estranho, não reconhecia nem a si mesma. Pensava que talvez esse nem fosse seu mundo, que na verdade seu verdadeiro lar ficasse em uma dimensão paralela, um lugar onde teria gente ao seu redor e que todos lhe entenderiam, onde seria feliz. Tais devaneios poderiam ser loucura, mas para ela faziam sentido.
            Mary não entendia o mundo e o mundo não a compreendia. A verdade é que quem não é criado através da forma da sociedade é visto como diferente, nocivo e por isso é excluído. Sentia raiva do mundo, raiva das pessoas, mas precisava de Alguém. Esse era seu paradoxo, e sempre que pensava nele, sentia vontade de ouvir uma música que lhe era especial, Help! dos Beatles. Adorava a canção, adorava o jogo utilizado por Lennon, que poucas pessoas compreendiam. Um ritmo agitado o qual encobria uma letra extremamente melancólica. A música nada tinha de animada. Essa música foi feita para mim, pensava Mary, pois ela também precisava de alguém, e não podia ser qualquer pessoa, tinha de ser um Alguém especial. Mas a única ajuda que tinha no momento estava dentro no armário da cozinha. Ela havia prometido nunca mais beber, mas era a única garrafa de cachaça que sobrara em casa, para que deixá-la guardada? Melhor bebê-la de uma vez, e foi o que fez. Sentou-se no sofá, o primeiro gole era como um catalisador, fazia crescer a vontade de tomar mais e não precisava de copo, a bebida ficava mais gostosa quando tomada direto da garrafa, a largos goles.
            E a vontade de chorar veio, Mary sequer segurou, as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Era um choro que vinha de dentro, trazia um pedaço de toda a dor, de todo sofrimento, de toda angústia que lhe afligia. Ela não só chorou, berrou, gritou com todas as forças. A cena era deprimente, digna de piedade.
            Depois de algum tempo começou a acalmar-se, continuava chorando só que agora em silêncio. Sentia-se embriagada já. Tudo isso tinha que acabar,  já não agüentava mais. Levantou-se e foi o mais lentamente que pode até o quarto. De dentro do roupeiro retirou um objeto embrulho num saco preto. Voltou a sentar-se no sofá e desembrulhou-o. Era um revólver calibre trinta e oito, com aspecto de novo, de que nunca tinha sido utilizado. Retirou as balas, deixando apenas uma, girou o tambor com força e sem olhar o fechou. Engraçado, pensou, a roleta russa é uma forma das mais estranhas de se morrer. A pessoa sabe que é de uma em seis a chance de morrer, e essa sensação de adrenalina mortal causa um terror psicológico inexplicável. Bebeu mais um gole, em uma das mãos segurava a garrafa e na outra a arma.
            Com os olhos fechados levou o cano do revólver até a boca. Os lábios que poderiam estar beijando outros lábios, quentes e molhados, agora estavam beijando o ferro gelado, beijavam a morte. Estava com medo, um arrepio lhe percorreu a espinha, mas fora para isso que bebera, para suporta, para perder nem fosse pelo menos um pouco desse medo. Apertou o gatilho. Silêncio. Continuava viva, o corpo inteiro tremia, as lágrimas aumentaram.
            Por que estava naquela situação? Podia estar naquele momento numa aconchegante casa, sentada à mesa com uma família alegre, degustando um saboroso jantar. Abriu o tambor, girou, fechou e sentiu mais uma vez o gosto gelado da morte em sua boca. Apertou o gatilho com força. Longo silêncio. Ainda não morrera, o desespero só aumentava. Mary queria parar com tudo aquilo, mas tomou dois grandes goles de bebida para criar mais coragem. Hesitou por um momento, mas criou coragem, girou e fechou o tambor com força, na boca o já familiar gosto. Olhos cerrados, rosto molhado, corpo tremendo. Apertou, o silêncio foi mais longo dessa vez. Era melhor parar. Não, já tinha chegado até ali. Será que nem a morte queria levá-la? Seria tamanha sua insignificância? Queria parar, mas o desespero lhe falava, vai, força, não seja fraca como sempre es, você não está sozinha, estou aqui do seu lado, está na hora de ir.
            Mary chorava, estava cansada. Abriu a arma e girou o tambor num lento ato reflexo apontou-a para o rosto, entre os dois olhos. Ali ficou durante algum tempo, o choro aumentando, já soluçava. Mary fraquejou, mirou a arma para o vaso de flores que estava em cima da tv e estilhaçou-o com o tiro. O estampido veio seguido de um grito. Mary chegara no limite de sua mente. Como esteve a ponto de fazer aquilo? Ia tirar  apropria vida. Levantou-se rapidamente, não podia mais ficar sozinha, ia acabar cometendo uma loucura, tinha perdido o controle sob si mesma. Abriu a porta e saiu correndo sem rumo, chovia muito. Estava escuro, Mary atravessou a  rua  sem  olhar para os lados. Um carro vinha em  alta  velocidade.  O  corpo  da  pobre  moça voou longe, parou estirado uns metros adiante. O motorista diminuiu, olhou para os lados e seguiu em alta velocidade, não havia  mais ninguém na rua, o melhor a fazer era fugir dali. Todo molhado o corpo de Mary jazia no meio da rua. Ainda  vivia. Do  canto  direito  do  lábio inferior escorria um filete de sangue,  dos  olhos,  escorriam,  ainda,  lágrimas. Mesmo molhada não sentia frio. Mesmo com os ossos  quebrados,  não  sentia dor física. Sentia uma dor psicológica. Sentia medo, queria  ajuda. Não agüentava mais ficar só. Mas não vinha ninguém. As pessoas estavam tranqüilas em suas casas. Ninguém sabia que existia uma Mary, uma  que  estava  morrendo,  que precisava de ajuda. Ali ela ficou. Ali, ela, Mary, morreu, aos  vinte  e  dois anos. Sozinha, com medo, triste, infeliz. Morreu com os olhos abertos,  cheios de lágrimas.