26 de set. de 2010

Acertando as contas

            Por volta de onze e meia estacionei o carro sob a sombra  de uma árvore, há três quadras de distância da escola Mário Quintana. Trazia comigo três amigos, Nenê, Calucho e o Caveira. Descemos. Nenê e Calucho se sentaram no cordão da calçada, enquanto eu e o Caveira nos escoramos na lateral do carro. O auto era meu, herança do meu pai, um velho Chevette setenta e nove, verde, bem conservado para a idade.
            “Tens um cigarro aí, negão?” me perguntou o Caveira. Retirei do bolso de trás da calça jeans surrada uma carteira de cigarros, um isqueiro e lhe alcancei. O Caveira era um moreno alto, magro, cabelo curto, dentes amarelados, queixo quadrado. Morava na mesma rua que eu. Tinha fundas olheiras escuras, e até um tempo atrás era um cara forte, robusto. O pessoal desconfiava que ele tava na pedra.
            “Puta que pariu, que calorão dos diabos! To pingando suor” exclamou o Calucho.
            “Porra véio, tira essa camisa, como é que não vais sentir calor!?” disse o Nenê.
            “Ele ta dando uma de tímido hoje, não quer mostrar os peitinhos pra nós” falei. “Quando tiver teu filho, os peitinhos pra dar de mamar pra ele tu já tem” todos rimos alto, exceto o Calucho.
            “De mamar eu vou dar é pra tua mãe, isso sim” disse Calucho e todos rimos mais alto ainda.
            Calucho era um negro gordo, barrigudo, baixinho. Vestia um macacão jeans já bem gasto, uma camiseta branca por baixo e um boné dos Lakers virado para o lado. Pelo rosto e pelos braços escorriam grossas gotas de suor. A gente tava sempre debochando um do outro, mas éramos amigões, quase como irmãos. Eu podia chamar ele pra qualquer que fosse o rolo que ele tava pronto pra me ajudar, e vice e versa.
            “Será que vai demorar muito? Tenho que almoçar e pego no trampo à uma e meia.” Perguntou Nenê enquanto limpava os dentes com a unha do dedo mínimo.
            “Fica tranquilo que é jogo rápido” respondi.
            “Vira concreto nesse sol é de matar. Só vou esperar juntar uma grana boa que dê pra comprar uma moto e vou saltar fora”.
            Nenê era um cara mediano, tinha a pele amarelada, a cabeça raspada. Vestia apenas um calção preto e um Quiks laranja. No abdômen se via a grande cicatriz, resultado de uma briga que ocorrera há uns anos na saída de uma festa. Por causa dessa briga Nenê pegou um ano de cana e perdeu o serviço que tinha de empacotador do BIG. Quando saiu veio me pedir auxilio, falei com um amigo e consegui um emprego de servente pra ele numa obra no centro. O sonho dele era comprar uma moto abrir uma tele entrega, mas estava difícil para concretizá-lo, pois no final do mês gastava mais da metade da grana tomando cachaça e fodendo as putas.
            Às onze e quarenta e cinco começaram a passar pela rua os primeiros alunos, uma playboyzada, que vestia moletom vermelho e calça de abrigo azul, o uniforme característico da escola.
            “Vamo fica atento, ta quase na hora” falei. Os dois que estavam sentados se levantaram. Enquanto os estudantes passavam, eu vigiava atento. Somente quando faltavam cinco para o meio dia é que o tal Ricardo foi aparecer. Um garoto magro, de estatura média, loiro, cabelos lisos pelos ombros, vestia o uniforme e carregava uma grande mochila preta. Um merdinha, seria mais fácil do que havia planejado. Vinha de mãos dadas com uma garota ruiva. Entramos no Chevette e fomos seguindo. Os dois andaram por três quadras, dobraram numa esquina e caminharam mais duas, até que pararam em frente a um grande casarão. Ele beijou a guria, se despediu e ela entrou.
            O cara seguiu caminhando, distraído, com os fones no ouvido. A ação foi rápida. Encostei o carro ao lado dele, Calucho e Caveira desceram num pulo. Ricardo não teve sequer tempo de gritar por socorro, pois Calucho, com os braços grossos, lhe aplicou um mata leão ao redor do pescoço enquanto Caveira pegava das pernas. Atiraram-no no banco de trás do carro, onde Nenê esperava. Nenê lhe aplicou dois violentos socos na barriga e disse “Nem pensa em gritar, porque vai ser pior pra ti”. Caveira correu e sentou na frente, ao meu lado. Parti a toda velocidade. A ação não durou mais que trinta segundos.
            Pelo espelho eu via a cara dele, mistura de medo e dor.
            “Por favor, podem levar tudo que eu tenho, meu celular, roupas, tênis, meu iPod, dinheiro, mas por favor não me machuquem” disse ele, mas não respondemos. “Eu não tenho muita grana aqui, mas eu posso ligar pra minha mãe, ela arranja mais, só precisa ir no banco”.
            “Ricardo, é esse o teu nome, não é?” perguntei. Ele permaneceu em silêncio, olhos arregalados. Calucho lhe aplicou um forte soco no rosto, que logo inchou formando um hematoma roxo logo abaixo do olho direito.
            “Ele tá falando contigo, responde”.
            “Si-sim, me chamo Ricardo.”
            “Então, seu Ricardo, só queremos conversar um pouco com o senhor, coisa rápida, enquanto isso lhe aconselho a ficar calado. Mas é só um conselho, pois se o senhor não tem amor pelos seus dentes pode falar a vontade, né Calucho?”. Meus amigos caíram na gargalhada.
            “Olha a cara desse viado, ta todo cagado” disse Nenê.
            Eu dirigia a noventa por hora, em direção a um terreno abandonado que ficava na zona do porto. Em quinze minutos chegamos lá, o local estava deserto. Descemos. Calucho segurava Ricardo por um braço, nós ao redor, caso ele tentasse escapar. No meio do terreno tinha os escombros do que havia sido um grande casarão. Nos dirigimos para a parte de trás, embaixo de uma imensa árvore.
            “Amarrem ele na árvore, como combinamos” falei. Os três fizeram Ricardo abraçar a árvore e amarraram os braços e pernas dele com cordas. Ele não falava, apenas assistia a tudo, com os olhos arregalados, o corpo todo tremendo.
            “Cuidado pra não mijar nas calças, hein” disse Calucho com ar debochado.
            Depois de terem amarrado o cara, eu disse “Bem senhor Ricardo, agora vamos conversar”. Puxei três tijolos improvisei um banco e sentei a uns dois metros da árvore. Meus amigos ficaram em pé, apenas observando a cena.
            “O senhor por acaso conhece a Maria não é?” eu perguntei, mas ele não respondeu.
            “Olha, eu não gosto de ser ignorado... então é melhor você responder as minhas perguntas”.
            “Sim, conheço a Maria”.
            “Pois bem, então quem é a tal Maria?”
            “Era uma guria que eu tava ficando”.
            “Você não deve saber, mas eu sou o irmão da Maria. E pelo que ela e as amigas me contaram, você comeu ela, tirou a honra da minha irmã, e depois meteu um pé na bunda dela, não é isso?”
            “Não! A gente namorava.”
            “Opa! Mas tu não acabou de dizer que ficavam? Agora já diz que namoravam?”
            Nenê, Calucho e Caveira assistiam à cena calados, eles sabiam que apesar do meu tom irônico eu estava puto da cara.
            “É que a gente não ficou muito tempo juntos, só uns dias”.
            “Não me interessa se foram apenas uns dias ou anos, e sim que tu, playboy de merda, comesse a minha irmã”.
            “Ela também tava a fim, eu não forcei nada cara”.
            “Pra que lugar tu levava ela pra foder?” perguntei, e meu tom agora saiu seco, sério. Eu olhava fundo nos olhos daquele desgraçado. Ele não respondeu, abaixou a cabeça e começou a chorar. Me levantei e repeti a pergunta.
            “Pra que lugar tu levava ela pra foder?”
            “Lá pra casa”.
            “Pra que lugar da tua casa? Anda, responde filho da puta!” gritei.
            “No quarto da empregada” disse ele baixinho, de cabeça baixa.
            Passei a mão pelo rosto tentando me controlar, eu sentia o ódio percorrer todo o meu corpo.
            “Vocês ouviram, esse mauricinho de bosta comia a minha irmã no quarto da empregada” disse olhando para os meus amigos.
            “Vamo quebra esse cuzão” falou Calucho entre dentes, ele também tinha raiva no olhar.
            “Calma, eu já sei o que vou fazer”. Voltei a encarar o Ricardo. “Quantos anos tu tens, cara?”
            “Tenho dezessete”.
            O pau no cu tinha a mesma idade que eu.
            “E tu sabe quantos anos tem a minha irmã?”
            “Tem catorze”.
            “Não, ela tem doze”.
            “Mas ela me disse que tinha catorze, eu juro”.
            “Ela ficou grávida” cerrei meus punhos ao pronunciar essa frase. Ricardo ficou estupefato.
            “Eu não sabia, cara, te juro que não sabia, ela não tinha me contado. Mas eu te prometo que eu assumo a criança, pago uma pensão e tudo”.
            “Eu já fiz ela abortar. Não ia deixar uma irmã minha ter filho teu. Antes ficasse prenha de um mendigo qualquer. Mas não me importa a gravidez. Não me importa a idade dela, a tua idade, se tu forçou ela ou se foi ela quem quis te dar. Nada disso me interessa”. Me aproximei mais dele. Me abaixei e com um graveto fiz uma linha no chão, de um lado ele, do outro eu..
            “Ta vendo essa linha aqui? Isso é o que me importa. Se eu atravessar ela, vou ter que sofrer as conseqüências, e se tu atravessar, também vai ter que sofrer. E tu atravessou e veio muito para o lado de cá, entende”
            Ele me olhava espantando, com o rosto molhado pelas lágrimas, não entendia nada que eu falava.
            “Agora eu vou ter que te punir cara, e tem que ser algo forte, pra servir de exemplo pros outros também. Abaixem as calças e cueca dele”.
            “Pô cara, pra que isso, eu peço desculpas, se tu quiser consigo uma boa grana pra tua família, mas não faz isso, eu sou homem” disse ele chorando feito um bêbe.
            “To vendo o quanto tu é homem” falei egargalhando, enquanto Caveira abaixava as calças dele. “Mas ninguém aqui vai comer teu cu rapaz, não te preocupa quanto a isso, temos nojo de ti.”
            Me afastei e olhei no terreno em volta. Atirada a um canto estava uma velha garrafa plástica de refrigerante. Peguei a garrafa e gritei pro Nenê “me atira o isqueiro”. Ele me atiro, ele e os outros não sabiam o que eu tinha em mente. Puxei do bolso da frente das calças um pequeno rojão.
            “Seu Ricardo, o senhor ta vendo isso aqui” falei segurando o rojão entre dois dedos “isso aqui é o famoso b12, praticamente uma bomba. Que tal ver o poder destrutivo dessa belezinha?”.
            Destampei a garrafa, acendi o b12, joguei pra dentro e tampei novamente, o mais rápido que consegui. Joguei a garrafa ao lado de Ricardo. Dentro de uns segundos veio a grande explosão. Uma nuvem de fumaça se levantou, deixando um forte cheiro de pólvora no ar. Ricardo entrou em choque, não piscava, a boca aberta.
            “Cara, tu não vai fazer isso que eu to pensando, né?” perguntou o Caveira rindo.
            “Abre o cu desse filho da puta.” Mal terminei de falar e Ricardo começou a berrar desesperadamente e a implorar que não fizesse aquilo. Quanto mais ele chorava e gritava, mais eu me sentia excitado. Tirei outro rojão do bolso e me aproximei.
            “Meu, tu só pode ser louco!” disse Calucho.
            Caveira afastou as duas nádegas do filho da puta. Enfiei metade do rojão pra dentro do cu dele e acendi. Nos afastamos rápido. Eu estava calmo. Tentava imaginar o que se passava na cabeça daquele cara, enquanto ele gritava, nos segundos que antecederam a explosão.

20 de set. de 2010

Mãe e filha

Serena acordou com o choro do bebê. Tinha a cara amassada de mais uma noite mal dormida. Olhou no despertador, oito horas de trinta e três minutos. Fazia pouco mais de meia hora que o marido havia saído para o trabalho. Serena se levantou, foi até o berço da criança que ficava no mesmo quarto, cerca de uns três metros de distância a frente da cama do casal. Pegou a criança no colo e começou a embalá-la.
            “Não chora Aninha, mamãe ta aqui contigo, não chora.”
            Aninha era a filha do casal, uma garotinha rechonchuda, de um ano e três meses de idade. Enquanto embalava a criança, Serena lembrava de como sua vida se transformara nos dois últimos anos. Relembrar esses acontecimentos era uma atividade que fazia várias vezes durante o dia.
            Serena conheceu Roberto em uma aula de Introdução aos Estudos Literários durante o primeiro semestre do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas. Ela tinha dezenove e ele vinte e um. Ficaram durante um tempo e passaram a namorar. Um relacionamento conturbado, cheio de brigas. Um ano depois ela engravidou, um momento difícil para os dois. Roberto se sentiu na obrigação de agir como um homem honrado e casar com Serena. Ela, a contra gosto, cedendo a pressão da família, acabou aceitando o casamento. Com a ajuda dos pais alugaram um pequeno apartamento de um quarto na Zona Norte e compraram alguns móveis e eletrodomésticos, coisa mínima. Quando Aninha nasceu, Serena trancou a faculdade para poder cuidá-la. Roberto estudou dois meses feito louco, prestou concurso para a prefeitura e foi aprovado em primeiro lugar para o cargo de auxiliar administrativo. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. O salário não era muito alto, e no final do mês sempre se viam obrigados a pedir dinheiro aos pais para poder pagar algumas contas. Até que um amigo de Roberto lhe arranjou um emprego à noite em um trailer de lanches, e ele também trancou a faculdade. Roberto passava o dia fora, saia de casa às oito da manhã e retornava somente de madrugada, lá pelas duas, caindo de cansaço. Serena passava o dia com a filha no apartamento. Vez que outra visitava os pais ou alguma amiga da faculdade. Mas ultimamente nem ânimo pra isso tinha, o máximo que fazia era dar uma breve caminhada com Aninha em volta da quadra ou então ir até o centro pagar contas.
            Após vários minutos de embalo, Aninha se acalmou, mas não voltou a dormir. Pela janela Serena viu que o tempo estava meio estranho. Aproximou-se, abriu o vidro e olhou para o céu. Dali a algumas horas quando muito, provavelmente estaria chovendo. Dirigiu-se à sala e se sentou no sofá. Ajeitou com carinho a menina em seu colo, abaixou uma alça da camisola, deixando amostra um pequeno seio e deu de mamar à criança. As nuvens bloqueando grande parte dos raios de sol, e as lâmpadas apagadas deixavam o local um tanto escuro. Serena pegou o controle remoto e ligou a TV. Uma mulher de avental branco, rodeada por panelas, potes, tigelas e recipientes ensinava a preparar um “escondidinho”. Trocou de canal. Tom armava uma de suas várias engenhocas para tentar capturar o Jarry. Trocou de canal. Um rapaz de voz fina apresentava as tendências em calçados para o próximo inverno. Trocou de canal. Embaixo da tela, num retângulo laranja, em letras brancas havia a mensagem Espiritismo: especialista afirma que os espíritos estão entre nós. E com uma típica melodia de mistério ao fundo, um homem gordo, calvo, de um largo bigode, trajando paletó preto e gravata listrada em azul e branco, falava as seguintes palavras:
            “Sim, os mortos estão entre a gente. Eles estão em todos os lugares. Aqui mesmo no estúdio agora vários deles nos fazem companhia. É verdade que não os vemos, mas isso não quer dizer que não estão aqui. Você aí que nos acompanha nesse momento, tente senti-los, se concentre. Sabe aquelas sensações que sentimos de estarmos sendo vigiados algumas vezes, pois são justamente os espíritos ao nosso redor. E os mortos nos passam tanto energias positivas quanto negativas. Se a pessoa era boa enquanto viva, ao morrer vai virar um espírito bom. Mas se ela era um indivíduo ruim, vai virar um espírito mau, o vulgo encosto, que fica passando energias negativas.”
            Enquanto o homem falava, algumas imagens com aparições de supostos espíritos passavam na tela. Um esboço do que parecia ser um garotinho em uma foto preta e branca muito antiga, tirada numa igreja. Um senhor alto, barbudo, calvo, trajando um terno, ao lado dos noivos numa festa de casamento. Uma menina de vestido branco em pé, ao fundo de uma sala de aula lotada. Serena desligou a TV, sentiu um arrepio de medo e olhou ao redor, imaginando quantos espíritos estariam com ela naquele momento, quem sabe até mesmo sentada ao seu lado. Notou que Aninha já terminara de mamar e havia pegado no sono. Com todo cuidado para não acordá-la deitou-a no carrinho.
            Foi até a cozinha e se desanimou ainda mais ao ver a pilha de louça na pia que lhe aguardava. Panelas, pratos, copos, garfos, facas, concha, fogão respingado de oléo. Foi até área, ali a pilha era formada por roupas. Calças, camisetas, camisas, cuecas, calcinhas, roupinhas da Ana, enfim, entretenimento para todo o dia. Mas Serena tinha vontade para nada. Voltou para o quarto, fechou as cortinas da janela e se deitou novamente deixando o carrinho ao seu lado. A pouca luz que entrava no local era a que vinha do corredor. Ficou a pensar. E se tivesse cometido o aborto, como uma amiga lhe aconselhara? Não conseguia evitar que tais pensamentos lhe invadissem a mente todos os dias. No começo até relutava, mas agora se deixava levar e refletia profundamente. Se tivesse abortado não estaria casada, ainda moraria com os pais e frenquentaria a faculdade. Roberto não precisaria se matar trabalhando o dia inteiro e também não precisaria lhe lançar indiretas durante as brigas, insinuando que ela não fazia nada além de dormir. Se tivesse abortado tudo seria diferente. Mas não se arrependia de ter tido a filho, pelo contrário, amava-a mais do que a si própria, a via como um pedaço do seu corpo, sem o qual seria impossível viver. Apenas não estava acostumada com aquela casa, com aquele estilo de vida, era o que pensava. Sentia-se uma estranha ali, tendo de ser mãe, esposa, dona de casa. Sentia-se uma intrusa, como se tal vida não fosse sua. Não era raro ela ficar no meio da sala olhando para os móveis, para o carrinho de Aninha, acariciando as paredes, e sentindo uma sensação esquisita, uma vontade de sair correndo a todo custo. Acordara várias vezes sobressaltada pelo mesmo pesadelo. Via-se sozinha no apartamento, portas e janelas fechadas, consumida pelo medo. Gritava por Roberto e Aninha, e sem obter retorno, começava a chorar. Corria por todos os cômodos e não encontrava ninguém. Pensava então em fugir para a rua, mas ao abrir a porta se deparava com um longo, estreito e escuro corredor. Percorria passo a passo, com a mão apoiada na parede devido a escuridão. Ao final do caminho outra porta. Serena tentava abri-la, mas estava trancada, voltava então e para seu terror a outra porta tbm se encontrava trancada. Encontrava-se presa, em completo desespero. Tentava gritar, mas tinha ficado sem voz. Aos poucos seu corpo caia, até que não conseguia mais se mover. As lágrimas escorriam aquela era a pior sensação do mundo.
            O choro de Aninha fez com Serena acordasse e se sentasse na cama de um salto. Ficou assim parada, olhando para o nada, olhos arregalados, pupilas dilatadas, na boca um gosto amargo. Apertava o lençol com força. As costas estavam encharcadas em suor. Serena se virou para o carrinho, e assim ficou algum tempo. O relógio despertador indicava ser meio dia.
            As duas horas Serena já havia lavado toda a louça e limpado a cozinha. Sentia-se estranha, as mãos suavam, achava que estava com febre. Inquieta, Aninha brincava no carrinho com algumas bonecas. O vento balançava as vidraças das janelas do apartamento e já começavam a cair os primeiros pingos, era o temporal chegando.
            Já eram quatro horas quatro horas da tarde quando Serena lavou a última peça de roupa que faltava, uma calça jeans de Roberto, manchada de óleo. Aninha começou a chorar. Serena pegou a menina no colo, abaixou a calça e pelo mau cheiro percebeu que a criança precisava ser trocada.
            “Aninha, meu amor, não tens mesmo pena da tua mamãe, hein! Precisava cagar feio desse jeito”. Disse a mãe, e Aninha respondeu com um largo sorriso deixando amostra seus dois dentinhos. Serena foi até o quarto, pegou uma toalha, o pacote com fraldas descartáveis e o pote com lenços umedecidos. Armou a toalha sobre a cama, deitou Aninha sobre ela. Tirou a roupa da criança, embrulhou a fralda suja e limpou a bunda da garota com os lenços. Suas mãos tremiam enquanto fazia isso. Teria de dar banho em Aninha. Pegou-a no colo e foi até o banheiro, onde encheu a banheira com água morna do chuveiro. Quando voltava para o quarto para pegar roupas limpas um trovão ensurdecedor a fez estacar, gelada. Um vento forte trazia nuvens carregadas, negras e de repente parecia que a tarde havia se transformado em noite e o apartamento mergulhou em uma escuridão cinzenta. Chuva, vento e raios. Serena se aproximou da janela, um relâmpago iluminou seu rosto e o de Aninha. Lá embaixo a rua estava deserta, e o vento arrastava todo o tipo de lixo. Serena voltou ao banheiro, colocou Aninha na banheira e começou a lavá-la com o sabonete. A garota gostava de banho, ria, balançava os bracinhos e pernas e emitia ruídos de felicidade.
            Serena então parou e olhou para a filha. O rosto alegre da menina contrastava com expressão séria e pálida da mãe. A mulher sentiu sua mente esvaziar, como se tivesse apagado todas as informações de seu cérebro, deixando um único desejo incontrolável, que se repetia numa velocidade constante: matar a menina. Sequer piscava, os lábios secaram e tremiam. Após relutar três vezes, ela mergulhou a menina na água. Em vão a criança começou a espernear. Serena mantinha os olhos fixos na filha, que aos poucos ia se afogando e morrendo. Aninha por fim parou de se mexer, e ficou boiando na água. Serena se levantou e com os olhos muito arregalados, a cabeça baixa, olhando para a banheira, começou a rir, primeiro um riso baixo, contido, mas que por fim se transformou numa gargalhada histérica, sombria, que se espalhou por todo o apartamento. Não era possível dizer se ela ainda mantinha seus sentidos. Então parou de rir, passou a mão pelos cabelos e se atirou sentada ao chão. O corpo inteiro tremia. Começou a arranhar o rosto, braços e peito deixando neles grandes vergões de sangue. Serena virava os olhos, movia a cabeça de um lado para outro, torcia e apertava os dedos das mãos e pés. Tentou se levantar, apoiando-se na pia, não tinha forças e acabou caindo de joelhos, os braços no chão, apoiando o corpo. Vomitou. Um vômito amarelo, mistura heterogênea, uma grande mancha nas lajotas brancas do piso do banheiro. Deitou-se ao lado da banheira em posição fetal, os braços junto ao peito, os olhos secos, sem nenhum lágrima.

13 de set. de 2010

O ALUNO


Corredores vazios
salas de aulas cheias
o professor falando
palavras
que sequer estou escutando
um beijo molhado
um sol quadrado
meu caderno em branco

EU


Pessoas estranhas
Vento estranho
Poesias estranhas...
Minha fala se confunde
Entre a imensidão de vozes
Já nem sei mais o que sou
Já nem sei mais

NA PRAIA

De baixo de
um céu nublado
da cor cinza solidão
mar escuro, denso
salgado
dilacerante vento
gelados
pingos que se soltam
das nuvens carregadas
a chuva lava
o vento seca
a sujeira continua
branca só a espuma
entre o mar e areia
dividindo dois mundos
o terceiro está além
além da água, da areia
das folhas
transfigurado em pensamentos
que se vão e se vêm
Ela se aproxima devagar
a saia balançando
os pés descalços
deixam na areia
mais do que pegadas

marcas

senta-se e diz oi
ele se vira e a encara
ela tem um rosto
lindo e triste
sentados lado a lado
cúmplices do mesmo sentimento
poderia ser, não?
não, melhor não
ele se levanta
sacode a areia
e vai embora

O DIA EM QUE ZÉ SE INDIGNOU COM SEU PAÍS

cuidando
roubando
correndo
correndo
correndo
pulando
batendo
subindo
pedalando
pedalando
pedalando
desviando
dobrando
caindo
levantando
correndo
correndo
escondendo
correndo
pulando
entrando
saindo
pulando
caindo
brigando
apanhando
viajando
mentindo
apanhando
mentindo
apanhando
confessando
chorando

ARTIGO INDEFINIDO


ARTIGO INDEFINIDO

Uma noite escura
Uma dor sem cura
Uma garrafa vazia
Uma garota nua
dorme
Uma dor na cabeça
Umas roupas jogadas
Um olhar pro lado
Uma pele macia
Uns poucos quinze anos
violados
Um desespero
Um arrependimento
Um arrependimento