20 de set. de 2010

Mãe e filha

Serena acordou com o choro do bebê. Tinha a cara amassada de mais uma noite mal dormida. Olhou no despertador, oito horas de trinta e três minutos. Fazia pouco mais de meia hora que o marido havia saído para o trabalho. Serena se levantou, foi até o berço da criança que ficava no mesmo quarto, cerca de uns três metros de distância a frente da cama do casal. Pegou a criança no colo e começou a embalá-la.
            “Não chora Aninha, mamãe ta aqui contigo, não chora.”
            Aninha era a filha do casal, uma garotinha rechonchuda, de um ano e três meses de idade. Enquanto embalava a criança, Serena lembrava de como sua vida se transformara nos dois últimos anos. Relembrar esses acontecimentos era uma atividade que fazia várias vezes durante o dia.
            Serena conheceu Roberto em uma aula de Introdução aos Estudos Literários durante o primeiro semestre do Curso de Letras da Universidade Federal de Pelotas. Ela tinha dezenove e ele vinte e um. Ficaram durante um tempo e passaram a namorar. Um relacionamento conturbado, cheio de brigas. Um ano depois ela engravidou, um momento difícil para os dois. Roberto se sentiu na obrigação de agir como um homem honrado e casar com Serena. Ela, a contra gosto, cedendo a pressão da família, acabou aceitando o casamento. Com a ajuda dos pais alugaram um pequeno apartamento de um quarto na Zona Norte e compraram alguns móveis e eletrodomésticos, coisa mínima. Quando Aninha nasceu, Serena trancou a faculdade para poder cuidá-la. Roberto estudou dois meses feito louco, prestou concurso para a prefeitura e foi aprovado em primeiro lugar para o cargo de auxiliar administrativo. Trabalhava durante o dia e estudava à noite. O salário não era muito alto, e no final do mês sempre se viam obrigados a pedir dinheiro aos pais para poder pagar algumas contas. Até que um amigo de Roberto lhe arranjou um emprego à noite em um trailer de lanches, e ele também trancou a faculdade. Roberto passava o dia fora, saia de casa às oito da manhã e retornava somente de madrugada, lá pelas duas, caindo de cansaço. Serena passava o dia com a filha no apartamento. Vez que outra visitava os pais ou alguma amiga da faculdade. Mas ultimamente nem ânimo pra isso tinha, o máximo que fazia era dar uma breve caminhada com Aninha em volta da quadra ou então ir até o centro pagar contas.
            Após vários minutos de embalo, Aninha se acalmou, mas não voltou a dormir. Pela janela Serena viu que o tempo estava meio estranho. Aproximou-se, abriu o vidro e olhou para o céu. Dali a algumas horas quando muito, provavelmente estaria chovendo. Dirigiu-se à sala e se sentou no sofá. Ajeitou com carinho a menina em seu colo, abaixou uma alça da camisola, deixando amostra um pequeno seio e deu de mamar à criança. As nuvens bloqueando grande parte dos raios de sol, e as lâmpadas apagadas deixavam o local um tanto escuro. Serena pegou o controle remoto e ligou a TV. Uma mulher de avental branco, rodeada por panelas, potes, tigelas e recipientes ensinava a preparar um “escondidinho”. Trocou de canal. Tom armava uma de suas várias engenhocas para tentar capturar o Jarry. Trocou de canal. Um rapaz de voz fina apresentava as tendências em calçados para o próximo inverno. Trocou de canal. Embaixo da tela, num retângulo laranja, em letras brancas havia a mensagem Espiritismo: especialista afirma que os espíritos estão entre nós. E com uma típica melodia de mistério ao fundo, um homem gordo, calvo, de um largo bigode, trajando paletó preto e gravata listrada em azul e branco, falava as seguintes palavras:
            “Sim, os mortos estão entre a gente. Eles estão em todos os lugares. Aqui mesmo no estúdio agora vários deles nos fazem companhia. É verdade que não os vemos, mas isso não quer dizer que não estão aqui. Você aí que nos acompanha nesse momento, tente senti-los, se concentre. Sabe aquelas sensações que sentimos de estarmos sendo vigiados algumas vezes, pois são justamente os espíritos ao nosso redor. E os mortos nos passam tanto energias positivas quanto negativas. Se a pessoa era boa enquanto viva, ao morrer vai virar um espírito bom. Mas se ela era um indivíduo ruim, vai virar um espírito mau, o vulgo encosto, que fica passando energias negativas.”
            Enquanto o homem falava, algumas imagens com aparições de supostos espíritos passavam na tela. Um esboço do que parecia ser um garotinho em uma foto preta e branca muito antiga, tirada numa igreja. Um senhor alto, barbudo, calvo, trajando um terno, ao lado dos noivos numa festa de casamento. Uma menina de vestido branco em pé, ao fundo de uma sala de aula lotada. Serena desligou a TV, sentiu um arrepio de medo e olhou ao redor, imaginando quantos espíritos estariam com ela naquele momento, quem sabe até mesmo sentada ao seu lado. Notou que Aninha já terminara de mamar e havia pegado no sono. Com todo cuidado para não acordá-la deitou-a no carrinho.
            Foi até a cozinha e se desanimou ainda mais ao ver a pilha de louça na pia que lhe aguardava. Panelas, pratos, copos, garfos, facas, concha, fogão respingado de oléo. Foi até área, ali a pilha era formada por roupas. Calças, camisetas, camisas, cuecas, calcinhas, roupinhas da Ana, enfim, entretenimento para todo o dia. Mas Serena tinha vontade para nada. Voltou para o quarto, fechou as cortinas da janela e se deitou novamente deixando o carrinho ao seu lado. A pouca luz que entrava no local era a que vinha do corredor. Ficou a pensar. E se tivesse cometido o aborto, como uma amiga lhe aconselhara? Não conseguia evitar que tais pensamentos lhe invadissem a mente todos os dias. No começo até relutava, mas agora se deixava levar e refletia profundamente. Se tivesse abortado não estaria casada, ainda moraria com os pais e frenquentaria a faculdade. Roberto não precisaria se matar trabalhando o dia inteiro e também não precisaria lhe lançar indiretas durante as brigas, insinuando que ela não fazia nada além de dormir. Se tivesse abortado tudo seria diferente. Mas não se arrependia de ter tido a filho, pelo contrário, amava-a mais do que a si própria, a via como um pedaço do seu corpo, sem o qual seria impossível viver. Apenas não estava acostumada com aquela casa, com aquele estilo de vida, era o que pensava. Sentia-se uma estranha ali, tendo de ser mãe, esposa, dona de casa. Sentia-se uma intrusa, como se tal vida não fosse sua. Não era raro ela ficar no meio da sala olhando para os móveis, para o carrinho de Aninha, acariciando as paredes, e sentindo uma sensação esquisita, uma vontade de sair correndo a todo custo. Acordara várias vezes sobressaltada pelo mesmo pesadelo. Via-se sozinha no apartamento, portas e janelas fechadas, consumida pelo medo. Gritava por Roberto e Aninha, e sem obter retorno, começava a chorar. Corria por todos os cômodos e não encontrava ninguém. Pensava então em fugir para a rua, mas ao abrir a porta se deparava com um longo, estreito e escuro corredor. Percorria passo a passo, com a mão apoiada na parede devido a escuridão. Ao final do caminho outra porta. Serena tentava abri-la, mas estava trancada, voltava então e para seu terror a outra porta tbm se encontrava trancada. Encontrava-se presa, em completo desespero. Tentava gritar, mas tinha ficado sem voz. Aos poucos seu corpo caia, até que não conseguia mais se mover. As lágrimas escorriam aquela era a pior sensação do mundo.
            O choro de Aninha fez com Serena acordasse e se sentasse na cama de um salto. Ficou assim parada, olhando para o nada, olhos arregalados, pupilas dilatadas, na boca um gosto amargo. Apertava o lençol com força. As costas estavam encharcadas em suor. Serena se virou para o carrinho, e assim ficou algum tempo. O relógio despertador indicava ser meio dia.
            As duas horas Serena já havia lavado toda a louça e limpado a cozinha. Sentia-se estranha, as mãos suavam, achava que estava com febre. Inquieta, Aninha brincava no carrinho com algumas bonecas. O vento balançava as vidraças das janelas do apartamento e já começavam a cair os primeiros pingos, era o temporal chegando.
            Já eram quatro horas quatro horas da tarde quando Serena lavou a última peça de roupa que faltava, uma calça jeans de Roberto, manchada de óleo. Aninha começou a chorar. Serena pegou a menina no colo, abaixou a calça e pelo mau cheiro percebeu que a criança precisava ser trocada.
            “Aninha, meu amor, não tens mesmo pena da tua mamãe, hein! Precisava cagar feio desse jeito”. Disse a mãe, e Aninha respondeu com um largo sorriso deixando amostra seus dois dentinhos. Serena foi até o quarto, pegou uma toalha, o pacote com fraldas descartáveis e o pote com lenços umedecidos. Armou a toalha sobre a cama, deitou Aninha sobre ela. Tirou a roupa da criança, embrulhou a fralda suja e limpou a bunda da garota com os lenços. Suas mãos tremiam enquanto fazia isso. Teria de dar banho em Aninha. Pegou-a no colo e foi até o banheiro, onde encheu a banheira com água morna do chuveiro. Quando voltava para o quarto para pegar roupas limpas um trovão ensurdecedor a fez estacar, gelada. Um vento forte trazia nuvens carregadas, negras e de repente parecia que a tarde havia se transformado em noite e o apartamento mergulhou em uma escuridão cinzenta. Chuva, vento e raios. Serena se aproximou da janela, um relâmpago iluminou seu rosto e o de Aninha. Lá embaixo a rua estava deserta, e o vento arrastava todo o tipo de lixo. Serena voltou ao banheiro, colocou Aninha na banheira e começou a lavá-la com o sabonete. A garota gostava de banho, ria, balançava os bracinhos e pernas e emitia ruídos de felicidade.
            Serena então parou e olhou para a filha. O rosto alegre da menina contrastava com expressão séria e pálida da mãe. A mulher sentiu sua mente esvaziar, como se tivesse apagado todas as informações de seu cérebro, deixando um único desejo incontrolável, que se repetia numa velocidade constante: matar a menina. Sequer piscava, os lábios secaram e tremiam. Após relutar três vezes, ela mergulhou a menina na água. Em vão a criança começou a espernear. Serena mantinha os olhos fixos na filha, que aos poucos ia se afogando e morrendo. Aninha por fim parou de se mexer, e ficou boiando na água. Serena se levantou e com os olhos muito arregalados, a cabeça baixa, olhando para a banheira, começou a rir, primeiro um riso baixo, contido, mas que por fim se transformou numa gargalhada histérica, sombria, que se espalhou por todo o apartamento. Não era possível dizer se ela ainda mantinha seus sentidos. Então parou de rir, passou a mão pelos cabelos e se atirou sentada ao chão. O corpo inteiro tremia. Começou a arranhar o rosto, braços e peito deixando neles grandes vergões de sangue. Serena virava os olhos, movia a cabeça de um lado para outro, torcia e apertava os dedos das mãos e pés. Tentou se levantar, apoiando-se na pia, não tinha forças e acabou caindo de joelhos, os braços no chão, apoiando o corpo. Vomitou. Um vômito amarelo, mistura heterogênea, uma grande mancha nas lajotas brancas do piso do banheiro. Deitou-se ao lado da banheira em posição fetal, os braços junto ao peito, os olhos secos, sem nenhum lágrima.

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