13 de set. de 2010

ROTINA

Dona Alzira, como de costume todas as manhãs, levantou bem cedo, às seis e meia. Vestiu seu velho casaco cinza e calçou as gastas chinelas. Depois, lentamente, com suas costas um pouco curvadas devido a idade, arrastando os pés, dirigiu-se ao banheiro. Abriu a torneira da pia, sem pressa alguma ensaboou as mãos, com elas fez uma concha, aparou a água e a levou até o rosto, repetindo esse movimento outras duas vezes. Esticou o braço, pegou a toalha e secou-se. A sua frente, o espelho refletia a imagem de um rosto cansado, marcado pelo tempo, pelas rugas. Na cabeça ainda lhe restavam ralos cabelos embranquecidos pelo suceder dos anos. Não havia como negar estava bem velha. Os oitenta e quatro anos lhe pesavam sobre as costas. Eram oitenta e quatro ou oitenta e cinco? Nem isso se lembrava mais, chegava a ser engraçado. Os olhos enxergavam pouco devido à catarata, mas nem isso impedia a velha de continuar com sua rotina diária.
            Após lavar-se, dona Alzira foi para a cozinha, abriu a velha e enferrujada geladeira vermelha, e d ela retirou uma caneca com leite. Após muita luta com o isqueiro, conseguiu acender o fogão. Ficou ali todo o tempo, dessa vez não queria que o leite derramasse, isso acontecia todos os dias, mas dessa vez ela não iría permitir, era questão de honra. Mas a velha deixou o isqueiro cair das mãos, no tempo em que demorou para se abaixar e levantar com ele em mãos, o leite derramou. Dna Alzira, como sempre fazia naquela situação, balançou a cabeça em sinal de negativo e murmurou baixinho um “de novo, de novo”. Foi até o armário e pegou um pacote de bolachas.
            Tudo isso fazia parte do ritual diário da velha. Acordar, levantar, lavar o rosto, tomar café e levar café para o marido. Esse era próximo passo, e foi o que fez. Sobre uma bandeja colocou a xícara com o leite e um pires contendo cinco ou seis bolachas. Oi meu velho, tá na hora de acordar, te trouxe um leitinho bem quente ia dizendo a velha enquanto sentava-se na beira da cama e soltava a bandeja sobre a cômoda. Vai comer as bolachas inteiras ou quer que eu desmanche elas no leite? Ai, ai, tu sempre responde a mesma coisa e eu sempre faço a mesma pergunta, falou a velha sorrindo enquanto picava as bolachas e as soltava dentro da xícara. Após apanhou a colher, encheu-a com o mingau formado pelo leite e pela bolacha picada e levou até a boca do marido, repetindo esse gesto algumas outras vezes. Vamo querido, só mais um pouquinho. Tá bom, tá bom, mas no almoço tu vai comer tudinho que eu trouxer hein. Ligar a TV? Tá bom, queres ver qual canal? Desenho? A gargalhada da velha ecoou pelo quarto. Nessa idade e ainda gosta de desenho. Dona Alzira dirigiu-se até a antiga televisão e ligou-a num canal. Na tela via-se Tom correndo atrás de Jerry.
            E a rotina seguia, as horas arrastavam-se como os pés de dona Alzira sobre o parquet ensebado do piso. A velha, com toda sua pachorra, lavou a louça, o fogão, e de tempos em tempos resmungava mas que fedor, deve ter algum esgoto entupido aqui perto. Varreu todos os cômodos e tirou o pó dos móveis. A casa não era muito grande, uma sala pequena onde havia dois envelhecidos e rasgados sofás e uma estante de madeira. Havia também dois quartos, o do casal e o outro um pouco maior, onde nele criaram os três filhos. Na parede havia locais onde a pintura descascava, outros onde faltavam pedaços de reboco. A casa tinha poucas janelas, além disso, estavam sempre fechadas, o que dava ao ambiente uma escuridão que chegava a ser sombria e um desagradável cheiro a mofo.
            Apesar da elevada idade, dona Alzira fazia todas suas tarefas com gosto. Na verdade se não as tivesse para fazer, não saberia viver. Tudo aquilo lhe entretinha. Após limpar a casa, preparou o almoço, uma canja de galinha. Encheu o prato, colocou-o sobre a bandeja junto de uma colher e se dirigiu para o quarto. Oi meu velho, tá na hora do almoço, fiz uma canja bem gostosinha pra ti. A velha soltou a bandeja sobre a cômoda, sentou-se na beira da cama e colocou um velho guardanapo encardido ao redor do pescoço do marido. Coisa de criança nada, isso aqui é pro senhor não se sujar como sempre faz. Dona Alzira encheu a colher com a sopa e levou até a boca do marido, repetindo esse movimento por várias vezes. Como não quer mais? Tu não comeu nem metade ainda querido. Cheio nada! Mal tomasse café hoje! Tá bem, tá bem, não vamo brigar, mas tu sabe que tem que se alimentar, pra poder levantar dessa cama e passear comigo no sol. Não pode ficar aí só deitado, não pode deixar a velhice te vencer. A velha recolheu o guardanapo, o qual estava empapado de canja de galinha, limpou o rosto do marido e comeu o restante da sopa que ainda estava no prato.
            Levantou-se, lentamente levou a bandeja para a pia e lavou a louça do almoço. Começava então o ritual da tarde, pelo cochilo de mais ou menos hora e meia. A velha voltou ao quarto, desligou a TV, sentou-se na cama, tirou o casaco e as chinelas e deitou-se ao lado do marido. E ficou parada, em silêncio, olhando fixamente para o teto, como se lá estive alguma coisa muito interessante. É triste meu velho, botamo três filhos no mundo e nenhum deles vem nos ver faz mais de mês. Não, o Pedro se mudou pra São Paulo, te esqueceu? O Roberto nunca foi muito apegado a gente. Mas a Julia é que me deixa triste, depois que casou parece que esqueceu que tem pais. É verdade, nem os netos vem nos ver. Mas não chora meu velho, não chora, temos um ao outro ia dizendo a velha com os olhos lacrimejados. Só nos resta é dormir que ganhamos mais. A velha aproximou-se do marido, beijou-lhe a face, virou-se para o lado, encolhida e adormeceu logo em seguida. Acordou alguns minutos depois com as batidas na porta. Já vai, já vai! Não deixam nem a gente dormir em paz!
            Dona Alzira levantou-se e dirigiu-se a porta o mais rapidamente que seu velho corpo permitira.
            – Julia querida, é você! Entra minha filha, a gente tava falando de você ainda pouco, que você tinha esquecido que tinha pais!
            – Oi mamãe, desculpa não ter vindo antes, mas agora que casei tenho andado sem tempo. Cuidar da casa, do trabalho e das crianças não é fácil – disse a mulher após beijar rapidamente o rosto da velha.
            Julia entrou e sentou-se numa cadeira na cozinha.
            – Mas que fedor é esse?
            – Ah, minha filha, é algum esgoto entupido. Vou ligar para eles virem consertar depois.
            – E a senhora, como está?
            – Estou bem, enxergando pouco, com algumas dores, mas bem. E você, por que não trouxe as crianças, eu quero tanto ver elas.
            – Elas estão na escola nesse horário. Eu só vim por que recebi folga no trabalho.
            – E seu marido, está te tratando bem?
            – Sim, ele é um anjo, mal para em casa, agora que abrimos a segunda loja. E papai como está?
            – Está bem, minha filha, louco pra te ver.
            – Posso ir lá vê-lo?
            – Claro, passe ali no quarto.
            No que entrou no quarto e viu o pai deitado, Julia colocou as mãos sobre a boca para abafar o grito.
            – Que foi minha filha, tá sentindo alguma coisa?
            Julia olhava para a mãe com cara de desespero, de quem não acreditava no que estava vendo e ouvindo.
            – Mamãe – falou ela com o rosto coberto por lágrimas – o papai morreu.
            – Que é isso guria! Não diz uma coisa dessas nem de brincadeira! Seu pai está dormindo.
            – Não mamãe, ele morreu. Como a senhora não percebeu até agora?
            – Ele só está dormindo, pára de dizer essa bobagem!
            – Ele morreu, mamãe.
            A velha então começou a gritar.
            – Não! Ele só tá dormindo! Vai embora, vai embora, me deixa em paz! Você nunca vem aqui, e quando vem é pra me fazer isso! Ele não morreu, não morreu.
            Aos poucos, a velha foi baixando a voz, dando lugar para um choro incontrolável. Julia abraçou a mãe, ali ficaram as duas, chorando, abraçadas. Na cama, o corpo do velho, morto fazia alguns dias, já entrando em estado de decomposição.

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