13 de set. de 2010

ROLETA RUSSA



            Mary andava de um lado para o outro da sala, era aquela maldita sensação de novo, aquele medo, frio intenso, vontade de sumir, era o desespero.
            Isso acontecia constantemente, mas hoje era diferente, estava realmente difícil de suportar. Sentou-se no sofá e tentou respirar fundo, mas de nada adiantou. Suava frio, as mãos tremiam e não paravam quietas, a cabeça latejava. Daria qualquer coisa para ter alguém com quem conversar nesse momento, mas não tinha, mais uma vez estava sozinha, não havia ninguém mais além dela em casa, na cidade, no mundo, ninguém que lhe ajudasse a fazer essa dor toda terminar.
            Tinha de acalmar-se o mais rápido possível, calma Mary, você já sentiu isso antes, não é a primeira vez, vai passar, sempre passa, dizia a si mesma. Mas a sensação era horrível, será que mais alguém já sentira aquilo? Será que tinha morrido e estava no inferno? Mas o inferno não é o lugar para onde irão todas as pessoas ruins? De repente o inferno de cada um é ficar aprisionado dentro da própria mente, é essa era uma hipótese. Sentia-se pior ainda ao pensar nessas coisas,  faltava-lhe ar nos pulmões. Tirou a roupa, precisava de um banho. Fechou os olhos, ajoelhou-se e ali ficou, durante longos minutos embaixo d’água morna. Secou-se sem pressa, o banho deixara-a menos agitada, mas a sensação ruim ainda continuara.
            Vestiu-se lentamente e foi até a janela. O vento frio esvoaçava os longos cabelos, tão negros quanto a noite lá fora, onde as pessoas seguiam normalmente com suas vidas mesquinhas, sem sequer saber que ali encontrava-se ela, Mary, em completo desespero. Riu baixinho. Na verdade nem se chamava Mary, e sim Maria. Quem lhe chamava assim era um ex-namorado, acabou gostando e o apelido foi ficando. Se lhe perguntavam qual seu nome, é Mary ela respondia. Mas hoje o tal namorado não estava mais com ela, abandonara-a, nunca mais voltaria.
            Mary lembrava-se de como tudo era bom antes. Era uma pessoa normal, feliz, sorridente como todas as outras pessoas. Mas tudo isso mudara com o tempo, havia metamorfoseado em uma mulher triste, amarga, infeliz, alguém sem vida, que sobrevive em meio à solidão. Sentia pena de si mesma, tudo poderia ter sido tão diferente.
            Atirou-se no sofá e olhou ao redor. As paredes amarelas, o tapete bege, a velha televisão que lhe fora companheira de tantas noites de insônia, as roupas e papéis atirados pelo chão, o aparelho de som que ganhara dos pais no último aniversário, a grande mesa de mogno acompanhada das seis cadeiras, enfim, tudo aquilo lhe era tão estranho agora. As pessoas lhe eram estranhas, o mundo lhe era estranho, não reconhecia nem a si mesma. Pensava que talvez esse nem fosse seu mundo, que na verdade seu verdadeiro lar ficasse em uma dimensão paralela, um lugar onde teria gente ao seu redor e que todos lhe entenderiam, onde seria feliz. Tais devaneios poderiam ser loucura, mas para ela faziam sentido.
            Mary não entendia o mundo e o mundo não a compreendia. A verdade é que quem não é criado através da forma da sociedade é visto como diferente, nocivo e por isso é excluído. Sentia raiva do mundo, raiva das pessoas, mas precisava de Alguém. Esse era seu paradoxo, e sempre que pensava nele, sentia vontade de ouvir uma música que lhe era especial, Help! dos Beatles. Adorava a canção, adorava o jogo utilizado por Lennon, que poucas pessoas compreendiam. Um ritmo agitado o qual encobria uma letra extremamente melancólica. A música nada tinha de animada. Essa música foi feita para mim, pensava Mary, pois ela também precisava de alguém, e não podia ser qualquer pessoa, tinha de ser um Alguém especial. Mas a única ajuda que tinha no momento estava dentro no armário da cozinha. Ela havia prometido nunca mais beber, mas era a única garrafa de cachaça que sobrara em casa, para que deixá-la guardada? Melhor bebê-la de uma vez, e foi o que fez. Sentou-se no sofá, o primeiro gole era como um catalisador, fazia crescer a vontade de tomar mais e não precisava de copo, a bebida ficava mais gostosa quando tomada direto da garrafa, a largos goles.
            E a vontade de chorar veio, Mary sequer segurou, as lágrimas escorreram-lhe pelo rosto. Era um choro que vinha de dentro, trazia um pedaço de toda a dor, de todo sofrimento, de toda angústia que lhe afligia. Ela não só chorou, berrou, gritou com todas as forças. A cena era deprimente, digna de piedade.
            Depois de algum tempo começou a acalmar-se, continuava chorando só que agora em silêncio. Sentia-se embriagada já. Tudo isso tinha que acabar,  já não agüentava mais. Levantou-se e foi o mais lentamente que pode até o quarto. De dentro do roupeiro retirou um objeto embrulho num saco preto. Voltou a sentar-se no sofá e desembrulhou-o. Era um revólver calibre trinta e oito, com aspecto de novo, de que nunca tinha sido utilizado. Retirou as balas, deixando apenas uma, girou o tambor com força e sem olhar o fechou. Engraçado, pensou, a roleta russa é uma forma das mais estranhas de se morrer. A pessoa sabe que é de uma em seis a chance de morrer, e essa sensação de adrenalina mortal causa um terror psicológico inexplicável. Bebeu mais um gole, em uma das mãos segurava a garrafa e na outra a arma.
            Com os olhos fechados levou o cano do revólver até a boca. Os lábios que poderiam estar beijando outros lábios, quentes e molhados, agora estavam beijando o ferro gelado, beijavam a morte. Estava com medo, um arrepio lhe percorreu a espinha, mas fora para isso que bebera, para suporta, para perder nem fosse pelo menos um pouco desse medo. Apertou o gatilho. Silêncio. Continuava viva, o corpo inteiro tremia, as lágrimas aumentaram.
            Por que estava naquela situação? Podia estar naquele momento numa aconchegante casa, sentada à mesa com uma família alegre, degustando um saboroso jantar. Abriu o tambor, girou, fechou e sentiu mais uma vez o gosto gelado da morte em sua boca. Apertou o gatilho com força. Longo silêncio. Ainda não morrera, o desespero só aumentava. Mary queria parar com tudo aquilo, mas tomou dois grandes goles de bebida para criar mais coragem. Hesitou por um momento, mas criou coragem, girou e fechou o tambor com força, na boca o já familiar gosto. Olhos cerrados, rosto molhado, corpo tremendo. Apertou, o silêncio foi mais longo dessa vez. Era melhor parar. Não, já tinha chegado até ali. Será que nem a morte queria levá-la? Seria tamanha sua insignificância? Queria parar, mas o desespero lhe falava, vai, força, não seja fraca como sempre es, você não está sozinha, estou aqui do seu lado, está na hora de ir.
            Mary chorava, estava cansada. Abriu a arma e girou o tambor num lento ato reflexo apontou-a para o rosto, entre os dois olhos. Ali ficou durante algum tempo, o choro aumentando, já soluçava. Mary fraquejou, mirou a arma para o vaso de flores que estava em cima da tv e estilhaçou-o com o tiro. O estampido veio seguido de um grito. Mary chegara no limite de sua mente. Como esteve a ponto de fazer aquilo? Ia tirar  apropria vida. Levantou-se rapidamente, não podia mais ficar sozinha, ia acabar cometendo uma loucura, tinha perdido o controle sob si mesma. Abriu a porta e saiu correndo sem rumo, chovia muito. Estava escuro, Mary atravessou a  rua  sem  olhar para os lados. Um carro vinha em  alta  velocidade.  O  corpo  da  pobre  moça voou longe, parou estirado uns metros adiante. O motorista diminuiu, olhou para os lados e seguiu em alta velocidade, não havia  mais ninguém na rua, o melhor a fazer era fugir dali. Todo molhado o corpo de Mary jazia no meio da rua. Ainda  vivia. Do  canto  direito  do  lábio inferior escorria um filete de sangue,  dos  olhos,  escorriam,  ainda,  lágrimas. Mesmo molhada não sentia frio. Mesmo com os ossos  quebrados,  não  sentia dor física. Sentia uma dor psicológica. Sentia medo, queria  ajuda. Não agüentava mais ficar só. Mas não vinha ninguém. As pessoas estavam tranqüilas em suas casas. Ninguém sabia que existia uma Mary, uma  que  estava  morrendo,  que precisava de ajuda. Ali ela ficou. Ali, ela, Mary, morreu, aos  vinte  e  dois anos. Sozinha, com medo, triste, infeliz. Morreu com os olhos abertos,  cheios de lágrimas.

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